A Vida no Mundo Improvável
Guerras na Europa, populismo tarifário e a ascensão das tribos políticas: o futuro chegou, e ele não é o que prometiam os anos 90
Há poucas décadas, o mundo parecia ancorado em certezas. A soberania de nações democráticas era sacrossanta. Conflitos diretos entre potências regionais, como Israel e Irã, eram contidos por diplomacia e interesses mútuos. Os políticos geralmente enfrentavam as consequências de discursos irresponsáveis. Em 2025, essas premissas desmoronaram.
Na política internacional, a invasão da Ucrânia pela Rússia em 2022 violou a norma da inviolabilidade territorial. Mais de 8 milhões de refugiados, segundo a ONU, fugiram do maior conflito em solo europeu desde a Segunda Guerra Mundial. O que tornava esse evento inconcebível era crença de que a interdependência econômica e as sanções internacionais seriam suficientes para conter ambições expansionistas.
Mas como argumenta o realista político John Mearsheimer, grandes potências priorizam seus próprios interesses estratégicos, e não necessariamente normas globais, expondo assim a fragilidade da arquitetura de segurança global construída no pós-Guerra Fria.
No Oriente Médio, a escalada atual de ataques diretos entre Israel e Irã derrubou outra certeza: a de que potências regionais evitariam confrontos abertos, confiando em guerras por proxy para manter um equilíbrio local, mesmo que instável e por vezes precário.
A improbabilidade desse cenário residia na suposição de que a diplomacia prevaleceria, ainda que permeada por ocasionais momentos de tensão, e que ataques diretos a centros urbanos seriam custosamente dissuasivos. Hoje, a erosão de canais diplomáticos —somada a uma cultura política de exaltação beligerante— mostra como uma estabilidade prolongada pode colapsar de forma abrupta.
Na política doméstica também se desfez uma certeza fundamental: a de que o discurso público tem limites éticos e consequências eleitorais. De Washington a Paris, de Nova Délhi a Brasília, líderes adotam retóricas polarizantes sem temor de punição nas urnas. Políticos não buscam mais o eleitor de centro, mas os demonizam na busca de fidelizar suas bases.
A professora Amy Chua descreve esse fenômeno com precisão. Em Political Tribes (2018), ela argumenta que o tribalismo político substitui a razão pelo pertencimento. Curiosamente, em sua versão paperback, o livro traz um elogio de J.D. Vance, atual vice-presidente dos EUA, que, em sua encarnação anterior, via com clareza os riscos de uma política dominada por identidades. “As políticas identitárias da esquerda e da direita ameaçam o consenso social [baseado em um senso comum de identidade nacional]”, escreveu.
As coisas mudam muito, e muito rápido: o protecionismo tarifário de Donald Trump —cujo custo médio, segundo a Tax Foundation, pode chegar a 1200 dólares por família— não é defendido por Republicanos por uma suposta lógica econômica, mas por lealdade identitária, tribal.
Mas como certezas tão fundamentais se dissolveram em tão pouco tempo? A globalização e a tecnologia, embora motores de progresso, também geraram mudanças, que geraram inseguranças, que alimentaram reações populistas. Nem todo mundo está confortável com mudanças, e diferentes mudanças causam desconfortos em grupos diferentes de pessoas. O populismo de esquerda e direita capturou essas ansiedades, que se manifestam de formas diferentes e tornam grupos mais vulneráveis a um ou outro tipo de argumento, e fizeram dela sua plataforma.
As redes sociais amplificam a desinformação e um senso comum de indignação. E desde a era dos “erramos” discretos no rodapé dos jornais sabemos que notícias falsas e manchetes exageradas se espalham mais rápido que os fatos e suas explicações tediosas.
Quando esse ambiente se generaliza, corroi a confiança nas instituições e legitima narrativas que desafiam a realidade objetiva. Quando políticos reescrevem o passado ou negam evidências, encontram amparo em públicos que não buscam a verdade, mas a reafirmação de sua identidade e dos seus sentimentos.
A dissolução dessas certezas expõe não apenas a fragilidade da ordem internacional, mas também a delicadeza das instituições da democracia liberal. Mas como reconstruímos a confiança num mundo onde o improvável virou rotina?
Isaiah Berlin alertava que a liberdade é frágil e exige vigilância constante. Vivemos hoje em um tempo que desafia nossas expectativas, nossos consensos racionais, e nos coloca como passageiros de um veículo conduzido por um motorista pouco confiável —e que, ironicamente, provavelmente nós mesmos tenhamos escolhido.
Preservar os valores da liberdade, da razão e do diálogo não é mais apenas louvável; é urgente. Defender a política como espaço civilizado de resolução de conflitos é uma necessidade. Sem ela —como muitos alertaram em tom metafórico, mas que hoje parece cada vez mais literal—, só nos sobrará a guerra para resolvermos nossas discordâncias.